A figura do profeta João Batista, o último dos profetas, o amigo do esposo, o precursor do Messias, aparece neste Tempo de Advento (II e III Domingos – Ano C) como aquele que não apenas anuncia as promessas de Deus, mas testemunha a sua realização. Ele proclama que a Palavra de Deus, que se encarnou, Jesus de Nazaré, é a salvação manifestada a todas as pessoas. Lucas, cuja perspectiva histórica se revela em toda a sua Obra (Evangelho – Atos dos Apóstolos), pois para ele a história é o palco da ação salvadora e libertadora de Deus, situa os eventos narrados no seu evangelho sempre em relação com os acontecimentos da história em geral. Para Lucas, não há uma história da salvação paralela, mas para ele toda a história é história de salvação.
Contudo, na perspectiva do evangelista, o mais importante na história não são os acontecimentos em si; mas é preciso que esses mesmos acontecimentos sejam iluminados e interpretados pela Palavra. Pois só Ela é capaz de revelar qual o seu verdadeiro sentido.
Ao introduzir o “acontecimento João Batista”, Lucas evidencia o horizonte histórico do momento, fazendo menção a diversas personalidades do campo político e religioso, isto é, do Imperador Romano ao pretenso rei judaico e seus administradores, do governador da Judeia aos sumos sacerdotes. Desta forma, prepara-se o cenário para a grande surpresa: “Foi então que a palavra de Deus foi dirigida a João, o filho de Zacarias”. Apesar da envergadura dessas personalidades, sobretudo a importância dos líderes religiosos (sumos sacerdotes), não foi a nenhum deles que a Palavra foi dirigida. E, mais grave ainda, ferindo toda lógica, esta Palavra não foi proclama nem nos palácios reais nem mesmo no templo, mas “no deserto”.
Contudo, apesar de ter sido dirigida exclusivamente a ele, esta Palavra não se tornou propriedade privada do profeta, mas pelo contrário: “Ele percorreu toda a região do Jordão, pregando um batismo de conversão para o perdão dos pecados”. Além do mais, ele mesmo tem consciência de que a Palavra não é uma palavra sua nem muito menos o autor daquilo que proclama. Só a Palavra tem autoridade de afirmar: “Eu vos digo”. O profeta, por sua vez, diz apenas o que ouviu: “Assim diz o Senhor”. Enquanto as autoridades citadas nesse contexto reivindicam o direito de sua legitimidade na arrogância do seu status quo, com aparatos de violência ou manipulações ideológicas, o profeta apresenta-se como “uma voz que clama no deserto”. Ele não tem uma palavra própria, é apenas uma voz que se disponibiliza, como foi a experiência do profeta Isaías.
E, assim, mais uma vez, o evangelista situa o profeta João no amplo horizonte histórico do povo de Israel. Apesar de não haver diferença de histórias, há uma distinção clara nos vários modos de ler a mesma história. A voz do profeta Isaías se fez ouvir num momento de grande deserto para o povo, o exílio da Babilônia. O povo exilado fez a experiência de grandes perdas (terra, templo, identidade etc.). Porém, mais do que o aspecto geográfico entre a Babilônia e Jerusalém, com suas imensas regiões desérticas, o grande deserto para o povo foi a sua experiência da ausência de Deus.
Foi quando, surpreendentemente, mais uma vez, Deus rompe o silêncio neste deserto, e através da voz do profeta Isaías, faz ouvir a sua Palavra de Salvação: “Assim diz Javé ao seu ungido, a Ciro que tomei pela destra, a fim de subjugar a ele as nações… Eu mesmo irei na tua frente e aplainarei lugares montanhosos” (Is 45,1-3). A Palavra de Deus foi dirigida a Ciro, um rei pagão, a fim de que libertasse Israel das mãos dos babilônicos (Is 45,1-7). Isaías foi o eco desta Palavra surpreendente: o Senhor fará o seu povo retornar da Babilônia, mas é preciso preparar os seus caminhos, isto é, as veredas pelas quais o Senhor chegará para reconduzir o seu povo de volta para Jerusalém, a sua cidade santa.
O profeta João, atualizando as palavras do Livro de Isaías, anuncia a chegada do Messias, não mais como um instrumento de Deus para um simples êxodo espacial, uma mudança de território, mas o Messias, Filho de Deus, o próprio Deus abrindo estradas com a sua Palavra nos caminhos da história. É Ele quem conduzirá o seu povo nessa nova e definitiva fase da história de salvação. A conversão dos pecados é a grande empreitada da humanidade para endireitar as vias de acesso do Senhor (III Domingo do Advento).
A Salvação não pode ficar escondida por trás de montanhas nem ter o seu acesso obstruído por vias tortuosas. Não é destinada a uns poucos privilegiados, mas é ação de Deus em toda a história e na história toda, a fim de que o seu Messias esperado faça acontecer o grande momento da história: “Todas as pessoas verão a salvação do nosso Deus”.
Por Dom André Vital Félix da Silva, SCJ
Bispo da Diocese de Limoeiro do Norte – CE.
Mestre em Teologia Bíblica pela Pontifícia Universidade Gregoriana.
Do Jovens Conectados